Rio de Janeiro,26 de junho, de 2013 2°bimestre
Ciências
Ciência
e explicação
Aristóteles
contribuiu para o desenvolvimento de muitas ciências, mas, em retrospectiva,
percebe-se que o valor desse contributo foi bastante desigual. A sua química
e a sua física são muito menos impressionantes do que as
suas investigações no domínio das ciências da
vida. Em parte porque não possuía relógios precisos
nem qualquer tipo de termómetro, Aristóteles não tinha
consciência da importância da medição da velocidade
e da temperatura. Ao passo que os seus escritos zoológicos continuavam
a ser considerados impressionantes pelo próprio Darwin, a sua física
estava já ultrapassada no século vi d. C.
Em
obras como Da Geração e Corrupção e Do Céu,
Aristóteles legou aos seus sucessores uma imagem do mundo que incluía
muitos traços herdados dos seus predecessores pré-socráticos.
Adoptou os quatro elementos de Empédocles: terra, água, ar
e fogo, caracterizado cada um deles por um único par de qualidades
primárias, calor, frio, humidade e secura. Cada elemento tinha o
seu lugar natural no cosmos ordenado, em direcção ao qual
tinha tendência para ir por meio de um movimento característico;
assim, os sólidos terrestres caíam, enquanto o fogo se erguia
cada vez mais alto. Cada um desses movimentos era natural ao seu elemento;
existiam outros, mas eram «violentos». (Mantemos hoje um vestígio
desta distinção aristotélica quando contrastamos a
«morte natural» com a «morte violenta».) A Terra
ocupava o centro do universo: em seu torno, uma sucessão de esferas
cristalinas concêntricas sustentavam a Lua, o Sol e os planetas nas
suas viagens ao longo dos céus. Mais distante, uma outra esfera
sustentava as estrelas fixas. Os corpos celestes não continham os
quatro elementos terrestres; eram antes constituídos por um quinto
elemento, ou quintessência. Além de corpos, possuíam
almas: intelectos vivos divinos que guiavam as suas viagens ao longo do
céu. Estes intelectos eram responsáveis pelo movimento, estando
eles próprios em movimento, e por detrás deles, afirmava
Aristóteles, deveria existir uma fonte de movimento, estando ela
própria, no entanto, imóvel. Era a divindade última
e imutável que punha em movimento todos os outros seres «em
resultado do amor» — o mesmo amor que, nas últimas palavras
do Paraíso de Dante, movia o Sol e as primeiras estrelas.
Mesmo
o melhor dos estudos científicos de Aristóteles possui hoje
um interesse meramente histórico; em vez de registar as suas teorias
em pormenor, passarei a descrever a noção de ciência
que sustenta todas as suas investigações nos diversos domínios.
A concepção aristotélica de ciência pode ser
resumida se dissermos que era empírica, explicativa e teleológica.
A
ciência começa pela observação. No decurso das
nossas vidas apercebemo-nos das coisas com os nossos sentidos, recordamo-las,
construímos um corpo de experiências. Os nossos conceitos
são retirados da nossa experiência; na ciência, a observação
tem primazia sobre a teoria. Embora, no seu estado de maturidade, se possa
fixar e transmitir a ciência por meio da forma axiomática
descrita nos Analíticos Posteriores, torna-se evidente, pelos trabalhos
pormenorizados de Aristóteles, que a ordem da descoberta é
diferente da ordem da exposição.
Se
a ciência começa com a percepção sensorial,
termina com o conhecimento intelectual, que Aristóteles vê
como possuindo um carácter especial de necessidade. As verdades
necessárias são como as verdades imutáveis da aritmética:
dois mais dois são quatro, sempre assim foi e sempre assim será.
Opõem-se-lhes as verdades contingentes, tais como a verdade de os
gregos terem vencido uma grande batalha naval em Salamina; algo que poderia
ter acontecido de outro modo. Parece estranho afirmar, como Aristóteles,
que aquilo que é conhecido tem de ser necessário: não
será que podemos ter também conhecimento de factos contingentes
da experiência, tais como o de Sócrates ter bebido a cicuta?
Houve quem julgasse que Aristóteles estava a argumentar, falaciosamente,
partindo da verdade
É conhecida, p é necessariamente verdadeira.
o
que não é de modo algum a mesma coisa. (É uma verdade
necessária que se eu sei que há uma mosca na minha sopa,
há uma mosca na minha sopa. Mas, mesmo que eu saiba que há
uma mosca na minha sopa, não é necessariamente verdade que
haja uma mosca na minha sopa: posso tirá-la de lá.) Mas talvez
Aristóteles estivesse a definir a palavra grega para «conhecimento»
de modo a restringir-se ao conhecimento científico. É uma
hipótese muito mais plausível, especialmente se levarmos
em linha de conta que, para Aristóteles, as verdades necessárias
não se restringem às verdades da lógica e da matemática,
mas incluem todas as proposições universalmente verdadeiras,
ou mesmo «verdadeiras na sua maior parte». Mas a consequência
— que seria certamente aceite por Aristóteles — de que a história
não pode ser uma ciência, já que lida com acontecimentos
individuais, mantém-se.
A
ciência é, pois, empírica; é também explicativa,
no sentido em que é uma procura de causas. No léxico filosófico
incluído na sua Metafísica, Aristóteles distingue
quatro tipos de causas ou explicações. Em primeiro lugar,
afirma, há aquilo de que as coisas são feitas, e a partir
da qual são feitas, tal como o bronze de uma estátua ou as
letras de uma sílaba. A isto chama causa material. Depois, há
a forma e o padrão de uma coisa, que podem ser expressos na definição
da mesma; Aristóteles fornece-nos um exemplo: o comprimento proporcional
de duas cordas de uma lira é a causa de uma ser a oitava da outra.
O terceiro tipo de causa é a origem de uma mudança ou estado
de repouso em qualquer coisa: Aristóteles dá como exemplos
uma pessoa que toma uma decisão, um pai que gera uma criança,
e em geral todos os que fazem ou alteram uma coisa. O quarto e último
tipo de causa é o fim ou objectivo, aquilo em virtude do qual se
faz algo; é o tipo de explicação que damos quando
nos perguntam por que motivo estamos a passear e nós respondemos
«para manter a boa forma».
O
quarto tipo de causa (a «causa final») tem um papel muito importante
na ciência aristotélica. Aristóteles investiga as causas
finais não só da acção humana, como também
do comportamento animal («Por que razão tecem as aranhas teias?»)
e dos seus traços estruturais («Por que razão têm
os patos membranas interdigitais?»). Existem causas finais também
para a actividade das plantas (tais como a pressão descendente das
raízes) e dos elementos inanimados (tais como o impulso ascendente
das chamas). Às explicações deste tipo chamamos «teleológicas»,
a partir da palavra grega telos, que significa fim ou causa final. Ao procurar
explicações teleológicas, Aristóteles não
atribui intenções a objectos inconscientes ou inanimados,
nem está a pensar em termos de um Arquitecto Supremo. Está,
sim, a enfatizar a função de diversas actividades e estruturas.
Uma vez mais, estava mais inspirado na área das ciências da
vida do que na química e na física. Até mesmo os biólogos
posteriores a Darwin continuam a procurar incessantemente a função,
ao passo que ninguém, depois de Newton, se lembrou de procurar uma
explicação teleológica para o movimento dos corpos
inanimados.
Palavras
e Coisas
Ao
contrário do seu trabalho nas ciências empíricas, há
aspectos da filosofia teórica de Aristóteles que podem ainda
ter muito para nos ensinar. Merecem especial destaque as suas afirmações
acerca da natureza da linguagem, da natureza da realidade e da relação
entre as duas.
Nas
suas Categorias, Aristóteles apresenta uma lista dos diferentes
tipos de coisas que podem afirmar-se a propósito de um indivíduo.
Essa lista contém 10 artigos: substância, quantidade, qualidade,
relação, espaço, tempo, postura, vestuário,
actividade e passividade. Faria sentido dizer, por exemplo, que Sócrates
era um ser humano (substância), que media 1,50 m (quantidade), que
era talentoso (qualidade), que era mais velho que Platão (relação),
que vivia em Atenas (espaço), que era um homem do século
v a. C. (tempo), que estava sentado (postura), que envergava uma capa (vestuário),
que estava a cortar um pedaço de tecido (actividade) e que foi morto
por envenenamento (passividade). Esta não é uma simples classificação
de predicados verbais: cada tipo de predicado irredutivelmente diferente,
pensava Aristóteles, representa um tipo de entidade irredutivelmente
diferente. Em «Sócrates é um homem», por exemplo,
a palavra «homem» representa uma substância, nomeadamente
Sócrates. Em «Sócrates foi envenenado», a palavra
«envenenado» representa uma entidade chamada «passividade»,
nomeadamente o envenenamento de Sócrates. Aristóteles pensava
provavelmente que qualquer entidade possível, fosse qual fosse a
sua classificação inicial, seria, em última análise,
atribuível a uma e apenas uma das 10 categorias. Assim, Sócrates
é um homem, um animal, um ser vivo e, em última análise,
uma substância; o crime cometido por Egisto é um assassinato,
um homicídio, um acto de matar e, em última análise,
uma actividade.
A
categoria da substância é de importância primordial.
As substâncias são coisas como mulheres, leões e couves,
que podem ter uma existência independente e ser identificados como
indivíduos de uma espécie particular; uma substância
é, na despretensiosa expressão de Aristóteles, «um
isto que é tal e tal» — este gato ou esta cenoura. As coisas
que pertencem às outras categorias (às quais os sucessores
de Aristóteles iriam chamar «acidentes») não
são independentes; um tamanho, por exemplo, é sempre o tamanho
de qualquer coisa. Os artigos das categorias «acidentais» existem
apenas enquanto propriedades ou modificações de substâncias.
As
categorias de Aristóteles não parecem ser exaustivas, e o
seu grau de importância parece bastante desigual. Mas, mesmo que
as aceitemos como uma possível classificação de predicados,
será correcto considerar que um predicado representa qualquer coisa?
Se «Sócrates corre» for verdadeira, deverá «corre»
representar uma entidade de qualquer tipo, tal como «Sócrates»
representa Sócrates? Mesmo que digamos que sim, é evidente
que tal entidade não pode ser o significado da palavra «corre».
Pois «Sócrates corre» faz sentido, mesmo sendo uma afirmação
falsa; e por isso «corre» significa algo, mesmo que não
exista aquilo que representa — neste caso, a corrida de Sócrates.
Se
considerarmos uma frase como «Sócrates é branco»,
podemos, segundo Aristóteles, pensar em «branco» como
algo que representa a brancura de Sócrates. Nesse caso, o que representa
o «é»? Parecem existir diversas respostas possíveis
a esta pergunta. a) Podemos dizer que não representa coisa alguma,
limitando-se a marcar a relação entre sujeito e predicado.
b) Podemos dizer que representa a existência, no sentido em que se
Sócrates é branco, é porque existe qualquer coisa
— talvez o Sócrates branco, ou talvez a brancura de Sócrates
— que não existiria se Sócrates não fosse branco.
c) Podemos dizer que representa o ser, entendendo-se «ser»
como um infinitivo substantivado como «correr». Se escolhermos
esta última resposta, parece ser necessário acrescentar que
existem diversos tipos de ser: o ser denotado pelo «é»
de um predicado substancial como «¼ é um cavalo»
é um ser substancial, enquanto o ser denotado pelo «é»
de um predicado acidental como «¼ é branco» é
um ser acidental. Em textos diferentes, Aristóteles parece ter privilegiado
ora uma, ora outra interpretação. A sua preferida é
talvez a terceira. Nas passagens onde a expressa, retira dela a consequência
de que o «ser» é um verbo de múltiplos significados,
um termo homónimo com mais de um sentido (tal como «saudável»
possui sentidos diferentes, mas relacionados, quando falamos de uma pessoa
saudável, de uma pele saudável e de um clima saudável).
Afirmei
anteriormente que, em «Sócrates é um homem»,
«homem» é um predicado da categoria da substância
que representa a substância Sócrates. Mas esta não
é a única análise que Aristóteles faz de uma
frase deste género. Por vezes, esse «homem» parece representar
antes a humanidade que Sócrates possui. Em tais contextos, Aristóteles
distingue dois sentidos de «substância». Um este tal
e tal — por exemplo, este homem, Sócrates — é uma substância
primeira; a humanidade que ele possui é uma substância segunda.
Quando fala nestes termos, Aristóteles esforça-se geralmente
por evitar os universais do platonismo. A humanidade que Sócrates
possui é uma humanidade individual, a humanidade própria
de Sócrates; não é uma humanidade universal da qual
todos os homens participem.
Movimento
e Mudança
Uma
das razões pelas quais Aristóteles rejeitou a Teoria das
Ideias de Platão foi porque esta, tal como a metafísica eleática,
negava de modo fundamental a realidade da mudança. Tanto na Física
como na Metafísica, Aristóteles apresenta uma teoria da natureza
da mudança concebida para enfrentar e desarmar o desafio de Parménides
e Platão. Trata-se da sua doutrina do acto e potência.
Se
considerarmos uma substância, como por exemplo um pedaço de
madeira, descobrimos uma série de coisas verdadeiras no que respeita
a essa substância num determinado momento, e uma série de
outras coisas que, não sendo verdadeiras no que a ela diz respeito
nesse momento determinado, poderão vir a sê-lo noutro momento.
Assim, a madeira, apesar de ser fria agora, pode ser aquecida e transformada
em cinza mais tarde. Aristóteles chamou «acto» àquilo
que uma substância é, e «potência» àquilo
que uma substância pode vir a ser: assim, a madeira está fria
em acto mas quente em potência, é madeira em acto mas cinza
em potência. A mudança do estado frio para o quente é
uma mudança acidental que a substância pode sofrer sem deixar
de ser a substância que é; a mudança do estado madeira
para o estado cinza é uma mudança substancial em que ocorre
uma mudança da própria substância. Em português
podemos dizer, muito grosseiramente, que os predicados que contêm
a palavra «pode», ou qualquer palavra com um sufixo modal como
«ável» ou «ível», significam potência;
os predicados que não contêm essas palavras significam acto.
A potência, em contraste com o acto, é a capacidade de uma
coisa para sofrer uma mudança de qualquer tipo, seja através
da sua própria acção, seja através da acção
de qualquer outro agente.
Os
actos envolvidos em mudanças chamam-se «formas», e o
termo «matéria» é utilizado como um termo técnico
para designar aquilo que possui a capacidade para sofrer uma mudança
substancial. Na nossa vida quotidiana, estamos familiarizados com a ideia
de que uma e a mesma parcela de um ingrediente pode ser primeiro uma coisa
e depois outro tipo de coisa. Uma garrafa contendo um quartilho de natas,
depois de agitada, poderá conter manteiga e não natas. Aquilo
que sai da garrafa é a mesma coisa que entrou: nada lhe foi retirado
nem acrescentado. Contudo, aquilo que sai é diferente em género
daquilo que foi introduzido. O conceito aristotélico de mudança
substancial é derivado de casos como este.
A
mudança substancial ocorre quando uma substância de um certo
tipo se transforma numa substância de outro tipo. Aristóteles
chama matéria àquilo que permanece a mesma coisa ao longo
da mudança. A matéria assume primeiro uma forma e depois
outra. Uma coisa pode mudar sem deixar de pertencer ao mesmo género
natural, por meio de uma mudança que não pertence à
categoria da substância, mas a qualquer uma das outras nove categorias:
assim, um ser humano pode crescer, aprender, corar e ser subjugado sem
deixar de ser humano. Quando uma substância sofre uma mudança
acidental retém sempre uma forma ao longo da mudança, nomeadamente
a sua forma substancial. Um homem pode ser primeiro P e depois Q, mas podemos
sempre aplicar-lhe correctamente o predicado «¼ é um
homem». E quanto à mudança substancial? Quando um pedaço
de matéria é primeiro A e depois B, haverá algum predicado
na categoria da substância, «¼ é C», que
possamos sempre aplicar correctamente a essa matéria? Em muitos
casos, não há dúvida de que existe tal predicado:
quando o cobre e o estanho se transformam em bronze, a matéria em
mudança nunca deixa de ser metal ao longo do processo. Contudo,
não parece ser necessário que tal predicado deva existir
em todos os casos; parece logicamente concebível que possa existir
matéria que seja primeiro A e depois B sem que exista qualquer predicado
substancial que possamos aplicar-lhe sempre correctamente. Em todo o caso,
Aristóteles era dessa opinião; e chamou «matéria-prima»
ao-que-é-primeiro-uma-coisa-e-depois-outra-sem-ser-coisa-alguma-o-tempo-todo.
A
forma faz as coisas pertencerem a uma categoria particular; e, segundo
Aristóteles, aquilo que faz as coisas serem indivíduos dessa
categoria particular é a matéria. No dizer dos filósofos,
a matéria é o princípio de individuação
das coisas materiais. Isto significa, por exemplo, que duas ervilhas do
mesmo tamanho e forma, por muito semelhantes que sejam, por mais propriedades
ou formas que possam ter em comum, são duas ervilhas e não
uma, porque correspondem a duas diferentes parcelas de matéria.
Não
deve entender-se a matéria e a forma como partes de corpos, como
elementos a partir dos quais os corpos são feitos ou peças
dos quais possam ser retiradas. A matéria-prima não poderia
existir sem forma: não precisa de assumir uma forma específica,
mas tem de assumir uma forma qualquer. As formas dos corpos mutáveis
são todas formas de corpos particulares; é inconcebível
que exista uma qualquer forma que não seja a forma de um qualquer
corpo. A não ser que queiramos cair no platonismo que Aristóteles
explicitamente rejeitou com frequência, devemos aceitar que as formas
são logicamente incapazes de existir sem os corpos dos quais são
as formas. De facto, as formas nem existem em si próprias, nem são
geradas do modo como as substâncias existem e são geradas.
As formas, ao contrário dos corpos, não são feitas
de coisa alguma; dizer que existe uma forma de A significa apenas que existe
uma substância que é A; dizer que existe uma forma de cavalidade
significa apenas que existem cavalos.
A
doutrina da matéria e da forma é uma explicação
filosófica de certos conceitos que empregamos na nossa descrição
e manipulação quotidianas das substâncias materiais.
Mesmo aceitando que a definição é filosoficamente
correcta, fica ainda a questão: o conceito que procura clarificar
terá realmente um papel a desempenhar numa explicação
científica do universo? É sabido que aquilo que na cozinha
parece uma mudança substancial de entidades macroscópicas
possa surgir-nos no laboratório como uma mudança acidental
de entidades microscópicas. A questão de saber se uma noção
como a de matéria-prima possui, a um nível fundamental, qualquer
aplicação à física, onde falamos de transições
entre matéria e energia, continua a ser uma questão de opinião.
A
forma é um tipo particular de acto, e a matéria um tipo particular
de potência. Aristóteles pensava que a sua distinção
entre acto e potência constituía uma alternativa à
dicotomia entre Ser e Não-Ser, sobre a qual se apoiava a rejeição
parmenídea da mudança. Uma vez que a matéria estava
subjacente e sobrevivia a todas as mudanças, fossem substanciais
ou acidentais, não se punha a hipótese de o Ser se tornar
Não-Ser, ou de algo surgir a partir do nada. Uma das consequências
desta explicação aristotélica, contudo, foi a ideia
de que a matéria não poderia ter tido um princípio.
Séculos mais tarde, isto colocaria um problema aos aristotélicos
cristãos que acreditavam na criação do mundo material
a partir do nada.
Alma,
Sentidos e Intelecto
Uma
das aplicações mais interessantes da doutrina da matéria
e da forma de Aristóteles pode encontrar-se nos seus estudos de
psicologia, nomeadamente no tratado Da Alma. Para Aristóteles, os
homens não são os únicos seres que possuem alma ou
psique; todos os seres vivos a possuem, desde as margaridas e moluscos
aos seres mais complexos. Uma alma é simplesmente um princípio
de vida: é a fonte das actividades próprias de cada ser vivo.
Diferentes seres vivos possuem diferentes capacidades: as plantas crescem
e reproduzem-se, mas não podem mover-se nem ter sensações;
os animais têm percepção, sentem prazer e dor; alguns
podem mover-se, mas não todos; alguns animais muito especiais, nomeadamente
os seres humanos, conseguem também pensar e compreender. As almas
diferem de acordo com estas diferentes actividades, por meio das quais
se exprimem. A alma é, segundo a definição mais geral
que Aristóteles nos apresenta, a forma de um corpo orgânico.
Tal
como uma forma, uma alma é um acto de um tipo particular. Neste
ponto, Aristóteles introduz uma distinção entre dois
tipos de acto. Uma pessoa que não saiba falar grego encontra-se
num estado de pura potência no que diz respeito à utilização
dessa língua. Aprender grego é passar da potência ao
acto. Porém, uma pessoa que tenha aprendido grego, mas que ao longo
de um determinado tempo não faça uso desse conhecimento,
encontra-se num estado simultâneo de acto e potência: acto
em comparação com a posição de ignorância
inicial, potência em comparação com alguém que
esteja a falar grego. Ao simples conhecimento do grego, Aristóteles
chama «acto primeiro»; ao facto de se falar grego chama «acto
segundo». Aristóteles utiliza esta distinção
na sua descrição da alma: a alma é o acto primeiro
de um corpo orgânico. As operações vitais das criaturas
vivas são actos segundos.
A
alma aristotélica não é, enquanto tal, um espírito.
Não é, de facto, um objecto tangível; mas isso resulta
do facto de ser (como todos os actos primeiros) uma potência. O conhecimento
do grego também não é um objecto tangível;
mas
não é, por isso, algo de fantasmagórico. Se há
almas capazes, no seu conjunto ou em parte, de existirem sem um corpo —
questão sobre a qual Aristóteles teve dificuldade em formar
uma opinião — tal existência independente será possível
não por serem simplesmente almas, mas por serem almas de um tipo
particular com actividades vitais especialmente poderosas.
Aristóteles
fornece descrições biológicas muito concretas das
actividades da nutrição, crescimento e reprodução
que são comuns a todos os seres vivos. O tema torna-se mais complicado,
e mais interessante, quando procura explicar a percepção
sensorial (específica dos animais superiores) e o pensamento intelectual
(específico do ser humano).
Ao
explicar a percepção sensorial, Aristóteles adapta
a definição do Teeteto de Platão segundo a qual a
sensação é o resultado de um encontro entre uma faculdade
sensorial (como a visão) e um objecto sensorial (como um objecto
visível). Contudo, para Platão, a percepção
visual de um objecto branco e a brancura do próprio objecto são
dois gémeos com origem na mesma relação; ao passo
que, para Aristóteles, o ver e o ser visto são uma e a mesma
coisa. Este último propõe a seguinte tese geral: uma faculdade
sensorial em acto é idêntica a um objecto sensorial em acto.
Esta
tese aparentemente obscura é outra aplicação da teoria
aristotélica do acto e da potência. Permita-se-me ilustrar
o seu significado por meio do exemplo do paladar. A doçura de um
torrão de açúcar, algo que pode ser saboreado, é
um objecto sensorial, e o meu sentido do paladar, a minha capacidade para
saborear, é uma faculdade sensorial. A operação do
meu sentido do paladar sobre o objecto sensível é a mesma
coisa que a acção do objecto sensorial sobre o meu sentido.
Ou seja, o facto de o açúcar ter um sabor doce para mim é
uma e a mesma coisa que o facto de eu saborear a doçura do açúcar.
O açúcar em si é sempre doce; mas só quando
o coloco na boca a sua doçura passa de potência a acto. (Ser
doce é um acto primeiro; saber a doce, um acto segundo.)
O
sentido do paladar não é mais do que o poder para saborear,
por exemplo, a doçura dos objectos doces. A propriedade sensorial
da doçura não é mais do que ter um sabor doce para
aquele que saboreia. Assim, Aristóteles tem razão quando
afirma que a propriedade em acção é uma e a mesma
coisa que a faculdade em operação. Claro que o poder para
saborear e o poder para ser saboreado são duas coisas muito diferentes,
a primeira relativa àquele que saboreia, e a segunda relativa ao
açúcar.
Este
tratamento da percepção sensorial é superior ao de
Platão porque nos permite afirmar que as coisas do mundo possuem
de facto qualidades sensoriais, mesmo quando não são percepcionadas.
As coisas que não estão a ser vistas são realmente
coloridas, e o mesmo se aplica aos cheiros e aos sons, que existem independentemente
do facto de serem ou não percepcionados. Aristóteles pode
afirmá-lo porque a sua análise do acto e da potência
lhe permite explicar que as qualidades sensoriais são de facto poderes
de um determinado tipo.
Aristóteles
serve-se também desta teoria quando lida com as capacidades racionais
e intelectuais da alma humana, fazendo uma distinção entre
os poderes naturais, como o poder de queimar do fogo, e os poderes racionais,
como a capacidade de falar grego. E defende que se todas as condições
necessárias para o exercício de um poder natural estiverem
presentes, esse poder será necessariamente exercido. Se pusermos
um pedaço de madeira, adequadamente seco, sobre uma fogueira, o
fogo queimá-lo-á; não há alternativa. Contudo,
tal não acontece com os poderes racionais, que podem ser exercidos
ou não, de acordo com a vontade do sujeito. Um médico que
possua o poder para curar pode negar-se a exercitá-lo se o seu paciente
for insuficientemente rico; pode até utilizar os seus talentos médicos
para envenenar o paciente, em vez de o curar. A teoria dos poderes racionais
de Aristóteles será usada para explicar o livre-arbítrio
humano por muitos dos seus sucessores.
A
doutrina de Aristóteles sobre os poderes intelectuais da alma é
algo inconstante. Por vezes, o intelecto é apresentado como parte
da alma; por conseguinte, e uma vez que a alma é a forma do corpo,
o intelecto assim concebido deverá morrer com o corpo. Noutros pontos,
Aristóteles argumenta que, sendo o intelecto capaz de apreender
verdades necessárias e eternas, deverá ser em si mesmo, por
afinidade, qualquer coisa de independente e indestrutível; e a dada
altura sugere que a capacidade para pensar é algo de divino e exterior
ao corpo. Finalmente, numa passagem desconcertante, objecto de intermináveis
discussões ao longo dos séculos que se seguiriam, Aristóteles
parece dividir o intelecto em duas faculdades, uma perecível e a
outra imperecível:
O
pensamento, tal como o descrevemos, é aquilo que é em virtude
de poder tornar-se todas as coisas; ao passo que existe algo que é
o que é em virtude de poder fazer todas as coisas: trata-se de uma
espécie de estado positivo como a luz; pois, num certo sentido,
a luz transforma as cores em potência em cores em acto. Neste sentido,
o pensamento é separável, não passivo e puro, sendo
essencialmente acto. E quando separado é exactamente aquilo que
é, e só ele é imortal e eterno.
A
característica do intelecto humano que terá por vezes levado
Aristóteles a entendê-lo como separado do corpo e divino é
a sua capacidade para o estudo da filosofia e, especialmente, da metafísica;
e por isso temos de explicar finalmente de que modo Aristóteles
entendia a natureza desta sublime disciplina.
Metafísica
«Há
uma disciplina», escreve Aristóteles no quarto livro da sua
Metafísica, «que teoriza sobre o Ser enquanto ser e sobre
as coisas que pertencem ao Ser tomado em si mesmo.» A esta disciplina
chama Aristóteles «filosofia primeira», definindo-a
noutro texto como o conhecimento dos primeiros princípios e das
causas supremas. As outras ciências, afirma, lidam com um tipo de
ser particular, mas a ciência do filósofo diz respeito ao
Ser universalmente e não apenas parcialmente. Noutras obras, contudo,
Aristóteles parece restringir o objecto da filosofia primeira a
um tipo particular de ser, nomeadamente a uma substância divina,
independente e imutável. Existem três filosofias teóricas,
afirma ele num outro texto: a matemática, a física e a teologia;
e a primeira e mais digna das filosofias é a teologia. A teologia
é a melhor das ciências teóricas porque lida com os
seres mais dignos; precede a física e a filosofia natural, sendo
mais universal do que elas.
Ambos
os conjuntos de definições até ao momento considerados
tratam a filosofia primeira como dizendo respeito ao Ser ou aos seres;
diz-se também que é a ciência da substância ou
substâncias. Em determinado ponto, Aristóteles afirma que
a velha questão «O que é o Ser?» equivale à
questão «O que é a substância?» Assim,
a filosofia primeira pode ser considerada a teoria da substância
primeira e universal.
Serão
todas estas definições do objecto de estudo da filosofia
equivalentes ou mesmo compatíveis? Alguns historiadores, considerando-as
incompatíveis, atribuíram os diferentes tipos de definições
a diferentes períodos da vida de Aristóteles. Mas, com algum
esforço, podemos mostrar que é possível conciliá-las.
Antes
de perguntarmos o que é o Ser enquanto ser, precisamos de esclarecer
o que é o Ser. Aristóteles utiliza a expressão grega
to on do mesmo modo que Parménides: o Ser é seja o que for
que é seja lá o que for. Sempre que Aristóteles explica
os sentidos de «to on», fá-lo explicando o sentido de
«einai», o verbo «ser». O Ser, no seu sentido mais
lato, é tudo o que possa surgir, numa qualquer frase verdadeira,
antes da forma verbal «é». Segundo esta perspectiva,
uma ciência do ser não seria tanto uma ciência daquilo
que existe, mas antes uma ciência da predicação verdadeira.
Todas
as categorias, diz-nos Aristóteles, exprimem o ser, porque qualquer
verbo pode ser substituído por um predicado que contenha o verbo
«ser»: «Sócrates corre», por exemplo, pode
ser substituído por «Sócrates é um corredor».
E todo o ser em qualquer categoria que não a da substância
é uma propriedade ou modificação da substância.
Isto significa que sempre que temos uma frase sujeito-verbo na qual o sujeito
não seja um termo para uma substância, podemos transformá-la
numa outra frase sujeito-verbo na qual o termo sujeito denota realmente
uma substância — uma substância primeira, como um homem ou
uma couve particulares.
Para
Aristóteles, assim como para Parménides, é um erro
equiparar simplesmente o ser à existência. Quando discute,
na Metafísica, os sentidos de «ser» e «é»
do seu léxico filosófico, Aristóteles nem sequer refere
a existência como um dos sentidos do verbo ser, uma utilização
que deverá distinguir-se da utilização do verbo com
um complemento num predicado, tal como em «ser um filósofo».
Isto surpreende-nos, já que ele próprio parece fazer essa
distinção em livros anteriores. Nas Refutações
Sofísticas, para contradizer a falácia segundo a qual aquilo
em que se pensa deve existir para ser pensado, Aristóteles distingue
entre «ser F», no qual ao verbo se segue um predicado (por
exemplo, «ser pensado»), e apenas «ser». Aristóteles
toma uma posição semelhante em relação ao ser
F daquilo que deixou de ser, sem mais: por exemplo, de «Homero é
um poeta» não se segue que Homero é.
Será
talvez um erro procurar na obra de Aristóteles um só tratamento
da existência. Quando os filósofos levantam questões
a propósito das coisas que realmente existem e daquelas que não
existem, é possível que tenham em mente três contrastes
diferentes: entre o abstracto e o concreto (por exemplo, sabedoria versus
Sócrates), entre o ficcional e o factual (por exemplo, Pégaso
versus Bucéfalo) e entre o existente e o defunto (por exemplo, a
Grande Pirâmide versus o Colosso de Rodes). Aristóteles lida
com os três problemas em obras diferentes. Lida com o problema das
abstracções quando discute os acidentes: são sempre
modificações da substância. Qualquer afirmação
sobre abstracções (como cores, acções, mudanças)
deve ser analisável como uma afirmação sobre substâncias
primeiras concretas. Lida com o problema do ficcional conferindo ao «é»
o sentido de «é verdadeiro»: uma ficção
é um pensamento genuíno, mas não é (ou seja,
não é um pensamento verdadeiro). O problema sobre o existente
e o defunto, que lida com as coisas que existem e aquelas que deixaram
de existir, é resolvido pela aplicação da doutrina
da matéria e da forma. Neste sentido, existir é ser matéria
sob uma certa forma, é ser uma coisa de certa categoria: Sócrates
deixa de existir ao deixar de ser um ser humano. Para Aristóteles,
o Ser inclui qualquer coisa que exista de uma destas três maneiras.
Se
o Ser é isso, o que é então o Ser enquanto Ser? A
resposta é que não existe tal coisa. É certamente
possível estudar o Ser enquanto ser e procurar as causas do mesmo.
Mas isto é entrar num tipo de estudo especial, procurar um tipo
de causa especial. Não é estudar um tipo de Ser especial
nem procurar as causas de um tipo de Ser especial. Mais do que uma vez,
Aristóteles insistiu em que «Um A enquanto F é G»
deve ser entendido como um sujeito A e um predicado «é, enquanto
F, G». Não deve ser entendido como consistindo num predicado
«é G» que está ligado ao sujeito Um-A-enquanto-F.
Eis um dos seus exemplos: «Um bem pode ser conhecido como bem»
não deve ser analisado como «um bem como bem pode ser conhecido»,
porque «um bem como bem» é uma expressão destituída
de sentido.
Mas
se «A enquanto F» é um pseudo-sujeito em «Um A
enquanto F é G», também «A enquanto F»
é um pseudo-objecto em «Nós estudamos A enquanto F».
O objecto desta frase é A, e o verbo é «estudamos enquanto
F». Estamos a falar não do estudo de um tipo particular de
objecto, mas de um tipo particular de estudo, um estudo que procura tipos
particulares de explicações e causas, causas enquanto F.
Por exemplo, quando estudamos fisiologia humana, estudamos os homens enquanto
animais, ou seja, estudamos as estruturas e funções que os
homens têm em comum com os animais. Não existe um objecto
que seja um homem enquanto animal, e seria um disparate perguntar se todos
os homens, ou se apenas alguns especialmente embrutecidos, serão
homens enquanto animais. É igualmente disparatado perguntar se o
Ser enquanto Ser significa todos os seres ou apenas alguns seres especialmente
divinos.
Contudo,
podemos estudar qualquer ser do ponto de vista particular do ser, ou seja,
podemos estudá-lo em virtude daquilo que tem em comum com todos
os outros seres. Será talvez legítimo pensar que isto é
muito pouco: de facto, o próprio Aristóteles afirma que nada
possui ser enquanto sua essência ou natureza: não há
nada que seja apenas ser e nada mais. Mas estudar algo enquanto um ser
é estudar algo sobre o qual é possível fazer predicações
verdadeiras, precisamente do ponto de vista da possibilidade de fazer predicações
verdadeiras sobre isso. A filosofia primeira de Aristóteles não
estuda um tipo particular de ser; estuda tudo, todo o Ser, precisamente
enquanto tal.
Ora,
a ciência aristotélica é uma ciência de causas,
pelo que a ciência do Ser enquanto ser será uma ciência
que procura as causas da existência de qualquer verdade acerca de
toda e qualquer coisa. Poderão existir tais causas? Não é
difícil conferir sentido ao facto de um tipo particular de ser possuir
uma causa enquanto ser. Se eu nunca tivesse sido concebido, nunca existiriam
quaisquer verdades sobre mim; Aristóteles afirma que se Sócrates
nunca tivesse existido, as frases «Sócrates está bem»
e «Sócrates não está bem» jamais poderiam
ser verdadeiras. Portanto os meus pais, que me deram existência,
são as minhas causas enquanto ser. (São também as
minhas causas enquanto ser humano.) Tal como os pais deles, e os pais dos
pais deles por sua vez, e, em última instância, Adão
e Eva, no caso de descendermos todos de um único par. E se algo
tivesse dado existência a Adão e Eva, seria essa a causa de
todos os seres humanos, enquanto seres.
Posto
isto, podemos ver claramente de que modo o Deus cristão, o criador
do mundo, pode ser entendido como a causa do Ser enquanto ser — a causa,
pela sua própria existência, das verdades sobre si próprio,
e, como criador, a causa eficiente da possibilidade de toda e qualquer
verdade acerca de toda e qualquer coisa. Mas no sistema de Aristóteles,
que não inclui um criador do mundo, qual é a causa do Ser
enquanto ser?
No
cume da hierarquia aristotélica dos seres estão os motores
móveis e imóveis que são as causas finais de toda
a geração e corrupção. São assim, de
certo modo, as causas de todos os seres perceptíveis e corruptíveis,
desde que sejam seres. A ciência que pretenda alcançar o motor
imóvel estará a estudar a explicação de toda
e qualquer predicação verdadeira e, desse modo, de todo e
qualquer ser enquanto ser. Na sua Metafísica, Aristóteles
explica que existem três tipos de substâncias: os corpos perecíveis,
os corpos eternos e os seres imutáveis. Os dois primeiros tipos
pertencem à ciência da natureza, e o terceiro à filosofia.
Aquilo que explicar a substância, afirma, explicará todas
as coisas, já que sem substâncias não existiriam mudanças
activas nem passivas. Aristóteles avança então para
a comprovação da existência de um motor imóvel,
concluindo que «de tal princípio dependem os céus e
a natureza» — ou seja, tanto os corpos eternos como os corpos perecíveis
dependem do ser imutável. E este é o divino, o objecto da
teologia.
O
motor imóvel é anterior às outras substâncias,
e estas são anteriores a todos os outros seres. «Anterior»
é aqui utilizado não num sentido temporal, mas para denotar
dependência: A é anterior a B, se pudermos ter A sem B mas
não B sem A. Se não existisse um motor imóvel, não
existiriam os céus e a natureza; se não houvesse substâncias,
não haveria qualquer outra coisa. Podemos agora entender por que
motivo Aristóteles afirmava que aquilo que é anterior possui
um poder explicativo mais elevado do que aquilo que é posterior,
e por que razão a ciência dos seres divinos, sendo anterior,
pode entender-se como a mais universal das ciências: porque lida
com seres que são anteriores, isto é, mais recuados na cadeia
da dependência. A ciência dos seres divinos é mais universal
do que a ciência da física porque explica tanto os seres divinos
como os seres naturais; a ciência da física explica apenas
os seres naturais e não os seres divinos.
Por
fim, conseguimos compreender como se harmonizam as diferentes definições
da filosofia primeira. Qualquer ciência pode ser definida pela área
que pretende explicar ou por meio da especificação dos princípios
pelos quais o explica. A filosofia primeira tem como área de explicação
o universal: propõe-se apresentar um tipo de explicação
para toda e qualquer coisa e encontrar uma das causas da verdade de toda
e qualquer predicação verdadeira. É a ciência
do Ser enquanto ser. Mas, se passarmos do explicandum para o explicans,
podemos dizer que a filosofia primeira é a ciência do divino;
pois aquilo que explica fá-lo por referência ao motor imóvel
divino. Não lida apenas com um só tipo de Ser, já
que faz a descrição não apenas do próprio divino,
mas de tudo o que existe ou é alguma coisa. Mas é, por excelência,
a ciência do divino, já que explica tudo por referência
ao divino e não, como a física, por referência à
natureza. Assim, a teologia e a ciência do Ser enquanto ser são
uma e a mesma primeira filosofia.
Somos
por vezes levados a pensar que a fase final da compreensão da metafísica
aristotélica é uma apreciação da natureza profunda
e misteriosa do Ser enquanto Ser. Na verdade, o primeiro passo em direcção
a essa compreensão é a tomada de consciência de que
o Ser enquanto Ser é um espectro quimérico engendrado por
não se prestar atenção à lógica aristotélica.
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